Leia a parte 1 desta análise em: O Apocalipse de João: pequena análise histórica (parte 1) (estudosbiblicosepersas.com)
4. A Mulher, o Dragão e as Bestas (Ap 12 e 13)
Os capítulos 12 a 18 do Apocalipse de João apresentam traços mais marcantes das condições sociais e econômicas vivenciadas por João de Patmos e seus leitores. As visões destes capítulos fornecem informações mais detalhadas dos conflitos já apontados pelo autor nas suas cartas às sete igrejas da Ásia Menor: judeus e cristãos vivendo num cenário de práticas idólatras, sob um império cuja capital é comparada à antiga Babilônia, ferrenha opressora histórica dos judeus.
O início do capítulo 12 traz um resumo da trajetória do Messias, ele é o filho da Mulher grávida perseguida pelo Dragão, identificado no texto como Satanás, expulso do céu por Miguel num combate escatológico (Ap 12.7-9). A Mulher pode ser facilmente identificada com Maria, mas também pode simbolizar a Igreja em uma situação de perseguição. É certo que houve perseguição contra a nascente Igreja cristã, no entanto, é preciso ter cuidado ao estabelecer a dimensão da perseguição no contexto do Apocalipse de João:
O fato de Antipas ser o único mártir citado pelo nome no Apocalipse sugere que a perseguição letal pode ter acontecido, mas ainda não era comum para os cristãos da Ásia Menor. Embora suponha que a grande perseguição vá ocorrer logo (3.10), João não crê que ela afetará todos os cristãos do mesmo modo. “Eis que o diabo vai lançar alguns dentre vós na prisão”, diz ele; “Mostra-te fiel até à morte [...]” (2.10). (KRAYBILL, 2004, p.45).
O poderio romano assume finalmente um caráter monstruoso a partir do capítulo 13 do Apocalipse. O Dragão, que transmite seu poder a uma Besta que sobe do mar, e a segunda Besta que surge da terra, podem ser entendidos como uma caricatura da trindade (Deus, Filho e o Espírito), (Bíblia de Jerusalém, p.2156), no entanto, as Bestas podem ser facilmente identificadas respectivamente como o Império Romano ou o imperador e o sacerdócio do culto imperial (KRAYBILL, 2004, p.34). A segunda Besta é responsável por estabelecer um cenário de adoração ao primeiro monstro, o que mostra uma tentativa de legitimar seu poder. João de Patmos apresenta um contraste entre a autoridade de Deus e do Cordeiro, baseada nas ações de Jesus como redentor, e a autoridade do Dragão e do monstro, baseadas na força, violência, sedução e engano (FILHO; NOGUEIRA, 2019, p.165).
5. Babilônia (Ap 17 e 18)
Devido ao trauma histórico de 587 a.C., quando Babilônia arrasou Judá e destruiu o templo dos judeus, formou-se uma tradição literária de crítica à cidade entre os profetas que mais tarde seria adotada por autores apocalípticos, entre eles João, que dela se apropria e reformula em Apocalipse 17 e 18 (KRAYBILL, 2004, p.197-200). Em 70 d.C. Roma destruiu o segundo templo, mas Babilônia continuou como símbolo do arqui-inimigo, desta vez servindo como analogia para Roma, como também registram os livros de 4 Esdras e 2 Baruc.
Em Apocalipse 11.8, a “Grande Cidade” é chamada de Sodoma e Egito. Daí em diante Roma recebe vários epítetos como “Babilônia” (18.1-24) e “Prostituta” (17.1-7), além de uma comparação implícita com Tiro, cidade condenada pelos profetas Isaías (23) e Ezequiel (27-28) pelo orgulho causado pelo sucesso econômico e idolatria. É da tradição de Isaías, que também compara Tiro a uma prostituta (Is 23.17), que João retira seu argumento de rejeição às alianças comerciais e políticas romanas como forma de prostituição (KRAYBILL, 2002, p.214).
A questão comercial torna-se evidente na descrição da queda de Babilônia em Apocalipse 18. Mercadores e marinheiros lamentam a queda da cidade por causa das oportunidades de enriquecimento que proporcionava (Ap 18.3-19). Neste momento pode-se perceber novamente a interação entre comércio, culto e idolatria que tanto incomodava João de Patmos:
A descrição da cidade como uma prostituta visitada pelos reis da terra indica tanto a idolatria e envolvimento com o seu comércio quanto o destaque dado à sua autoglorificação e arrogância. O nome Babilônia, dado à grande cidade, e a figura da “grande meretriz” são imagens que estigmatizam a idolatria do culto, bem como o luxo do império (FILHO; NOGUEIRA, 2019, p.169).
6. A Nova Jerusalém (Ap 21)
O contraste entre Roma (Babilônia) e a Nova Jerusalém (Ap 21) revelam alguns anseios de João de Patmos por uma sociedade justa e igualitária, possível por meio da intervenção divina na História: “Isaías e João de Patmos escreveram a respeito de um glorioso futuro, e ambos consideraram o presente uma mistura de idolatria, exploração militar e injustiça econômica” (KRAYBILL, 2004, p.292). Apesar das dificuldades daquele presente, a mensagem do Apocalipse de João para seus leitores é de que embora não se envolver com o culto imperial tivesse seus custos sociais e econômicos, eles podiam ter certeza de que participariam do culto a Deus e teriam cidadania plena na Nova Jerusalém.
Referências
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.
DA SILVA, Ângelo Vieira. O Apocalipse Canônico de João e o leitor cristão: um prefácio hermenêutico. Revista Davar Polissêmica, v. 9, n. 1, p.1-15, 2015. O Apocalipse canônico de João e o leitor cristão: um prefácio hermenêutico | Vieira da Silva | Davar Polissêmica (redebatista.edu.br)
FILHO, José Adriano; NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. O culto imperial e o Apocalipse de João. Estudos de Religião, v. 33, n. 1, p. 149-171, 2019. https://doi.org/10.15603/2176-1078/er.v33n1p149-171
KRAYBILL, J. Nelson. Culto e comércio imperiais no Apocalipse de João. São Paulo: Paulinas, 2004.
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