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O Apocalipse de João: pequena análise histórica (parte 1)

Atualizado: 12 de out. de 2021


O Apocalipse de João, que fecha a série de livros do Novo Testamento, é sem dúvida um dos mais complexos livros bíblicos. A obra de João de Patmos não é o único “apocalipse”, mas o gênero apocalíptico recebeu este nome devido ao seu Apocalipse, que foi o primeiro livro da tradição judaica e cristã a se apresentar explicitamente como uma apokalypsis (1.1, revelação), (COLLINS, 2010, p.382). Rico em visões e simbolismos, o Apocalipse também tem características de profecia e João de Patmos, para além de visionário apocalíptico, pode ser considerado profeta cristão.


O Apocalipse de João suscita diversas interpretações desde a antiguidade, foi texto influente ao longo da história e ainda hoje permanece sendo atualizado de acordo com novas conjunturas sociais e políticas. Esta pequena análise histórica tem por objetivo apresentar algumas prováveis referências e sentidos originais do texto, pretendendo mostrar algumas nuances da “interpretação histórica do Apocalipse, seu sentido primeiro e fundamental” (Bíblia de Jerusalém, p. 2140), com base em estudos especializados sobre os temas. Não se trata de uma análise com uma interpretação “preterista”, mas sim uma análise que procura apresentar um pouco da experiência de João de Patmos e de seus leitores do fim do século I d.C.


1. Autoria, datação, gêneros literários e interpretações


Diferente da maioria dos livros da literatura apocalíptica, o Apocalipse de João não utiliza um pseudônimo, ou seja, não procura conferir autoridade às revelações por meio do uso do nome de uma figura ilustre da tradição judaica como autor. O que é disputado é a identificação de João de Patmos com o apóstolo João, a quem a antiga tradição da Igreja atribuiu o quarto evangelho e o Apocalipse. Estudiosos sugerem que não se trata do apóstolo, mas de um profeta desconhecido e itinerante que estava familiarizado com as Igrejas da Ásia Menor: “Seu conhecimento das circunstâncias locais em sete comunidades (Ap 2.3) sugere que visitava ou, de algum outro modo, relacionava-se pessoalmente com membros dessas Igrejas” (KRAYBILL, 2004, p.42).


A última década do século I, quando o Império Romano estava sob o governo de Domiciano (81-96 d.C.), é sugerida tanto por autores da Igreja Primitiva (Irineu, Vitorino) quanto por estudiosos modernos como a data de composição do Apocalipse de João. Há quem argumente também por uma data do fim do reinado de Nero, nos contextos da revolta judaica em Jerusalém e da guerra civil em Roma (66-70 d.C.).


Há que se considerar a presença de pelo menos três gêneros literários principais no Apocalipse de João: carta, profecia e apocalíptica, “além de sua autocaracterização como um apocalipse e profecia, todo o livro do Apocalipse de João é apresentado como uma carta circular às sete Igrejas da Ásia Menor” (COLLINS, 2010, p.383). No entanto, embora o gênero carta tenha sido comum a cristãos eminentes do período, como o apóstolo Paulo, o conteúdo dos capítulos 4 a 22 do Apocalipse de João se difere em forma e estilo das cartas do Novo Testamento.

Teologicamente falando, as linhas interpretativas mais populares para o Apocalipse de João são quatro: a preterista; a futurista; a espiritualista ou idealista e a historicista. Basicamente, elas se diferem na proposta hermenêutica (interpretativa) para o livro, indo desde a sugestão de que o Apocalipse se refere somente a fatos de sua própria época até a percepção de que é um livro que contém profecias não cumpridas e que devem ser interpretadas literalmente (SILVA, 2015, p.5-10). Para uma análise mais detalhada destas linhas interpretativas indico o artigo de Ângelo Vieira da Silva: “O Apocalipse Canônico de João e o leitor cristão: um prefácio hermenêutico”.


2. As cartas às igrejas da Ásia Menor (Ap 2 e 3)


As cartas de João de Patmos às igrejas da Ásia Menor (Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia, Ap 1.11) revelam algumas das principais problemáticas desenvolvidas ao longo do livro. Nelas João cita práticas que considerava repulsivas, recorrendo a alguns personagens que eram sinônimos de idolatria: “a doutrina de Balaão” (Ap 2.14); “a doutrina dos nicolaítas” (Ap 2.15); “Jezabel” (Ap 2.20) e “os da sinagoga de Satanás” (Ap 3.9).


É sabido que uma preocupação central de João de Patmos era o culto imperial, que preconizava a divinização e adoração de imperadores romanos. Este culto, juntamente com outras práticas pagãs, permeavam o comércio e sociedade de sua época. As práticas idólatras às quais João se refere certamente estão relacionadas a essa mistura: “O sincretismo religioso e a idolatria não só tentam a Igreja; criaram raízes dentro da própria comunidade de fé” (KRAYBILL, 2004, p.52). Devido a inevitável separação entre o culto imperial e o comércio, João de Patmos recomendou que os judeus e cristãos autênticos cortassem suas relações com Roma: “Saí dela, ó meu povo, para que não sejais cúmplices dos seus pecados e atingidos pelas suas pragas” (Ap 18.4). Na prática, isso significaria se expor à vulnerabilidade econômica e social, sacrifício que seria recompensado pelo próprio Jesus Cristo, como expressam as cartas às sete igrejas (Ap 1.4 - 3.22).


3. Tronos, o livro selado e o Cordeiro (Ap 4 e 5)


A estrutura literária do Apocalipse de João é definida, a partir do capítulo 5, pelos sete selos de um livro que somente o Cordeiro, “como que imolado” (Ap 5.6), clara representação de Jesus Cristo, é capaz de romper. São desses selos que derivam as sete trombetas e sete taças, trazendo uma série de visões e acontecimentos escatológicos de julgamento e salvação ao longo do livro.


No capítulo 4 uma corte celestial é apresentada com tronos e vinte e quatro anciãos, que prestam adoração e culto a Deus. No artigo “O culto imperial e o Apocalipse de João”, os professores José Adriano Filho e Paulo Augusto de Souza Nogueira demonstram como João de Patmos adapta e inverte motivos do culto imperial romano nos capítulos 4 e 5 de seu Apocalipse: “O profeta João refuta com violência o culto ao governante por meio de críticas, de associações imagéticas negativas etc., e, ao mesmo tempo adapta elementos do culto ao governante oriental para representar a corte celeste, a veneração de Deus e do Cordeiro” (FILHO; NOGUEIRA, 2019, p.158).


Orações, cânticos, anciãos com coroas de ouro, que são lançadas diante do trono em sinal de adoração e honra ao Cordeiro, são alguns elementos que encontram paralelos na veneração do imperador: “No culto imperial, havia oficiais que ocupavam assentos de honra no culto. É significativo que os anciãos também usem coroas de ouro, pois alguns cidadãos usavam coroas comuns em suas reuniões. O lançamento das coroas pelos anciãos diante do trono (4,10) é paralelo ao culto imperial, pois era prática comum apresentar o governante divino com uma coroa de ouro e adorá-lo diante de sua cadeira vazia” (FILHO; NOGUEIRA, 2019, p.160-161). Depois de alertar as sete igrejas sobre a idolatria dos que se envolviam com práticas pagãs e fazer dura crítica ao culto do governante, João de Patmos aponta o único digno de receber adoração: o Cordeiro (Ap 5.11-12).



Referências


BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.


COLLINS, John J. Apocalipticismo no cristianismo primitivo. In: COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica. Uma introdução à literatura apocalíptica judaica. São Paulo: Paulus, 2010.


DA SILVA, Ângelo Vieira. O Apocalipse Canônico de João e o leitor cristão: um prefácio hermenêutico. Revista Davar Polissêmica, v. 9, n. 1, p.1-15, 2015. O Apocalipse canônico de João e o leitor cristão: um prefácio hermenêutico | Vieira da Silva | Davar Polissêmica (redebatista.edu.br)


FILHO, José Adriano; NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. O culto imperial e o Apocalipse de João. Estudos de Religião, v. 33, n. 1, p. 149-171, 2019. https://doi.org/10.15603/2176-1078/er.v33n1p149-171


KRAYBILL, J. Nelson. Culto e comércio imperiais no Apocalipse de João. São Paulo: Paulinas, 2004.





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