Em “Culto e comércio imperiais no Apocalipse de João”, J. Nelson Kraybill faz uma análise minuciosa de questões sociais e econômicas no Apocalipse de João com foco em temas do capítulo 18. De título original “Imperial cult and commerce in John’s Apocalypse”, o livro faz parte da coleção “Bíblia e História” da editora Paulinas, foi traduzido por Barbara Theoto Lambert e é uma leitura bastante acessível para o público não especializado e leitores da Bíblia.
O capítulo 18 do Apocalipse de João narra a queda da Babilônia, cidade que é metáfora para Roma. Na descrição do acontecimento impactante, o lamento de mercadores, navegadores e marinheiros é destacado devido ao enriquecimento que a cidade proporcionava (Ap 18.3-19). É a partir daí que Kraybill inicia sua análise socioeconômica, examinando “a maneira como o comércio e o culto imperiais se misturaram no mundo romano do século I e como João de Patmos achava que os seguidores de Jesus deviam agir” (p. 29).
Na sociedade romana do século I existiam dois principais caminhos para a mobilidade social dos que viviam nas províncias do Império: o serviço militar e os negócios, com destaque para o comércio. Ambos estavam permeados pelas práticas pagãs (que não eram judaicas ou cristãs), entre elas o culto imperial, preconizando a divinização de imperadores. Embora muitos judeus e cristãos da Ásia prosperassem sob domínio romano, muitos, sobretudo os mercadores, viviam em constante pressão ao tentar conciliar as peculiaridades de sua fé com as características da sociedade pagã consideradas idólatras por companheiros mais “radicais” na postura contra Roma.
O comércio era altamente associado ao culto imperial, a própria arte da navegação era combinada com rituais de culto na antiguidade. Pelo Império Romano, os mercados, instalações e cidades portuárias estavam repletos de inscrições, templos, símbolos pagãos e práticas de adoração a deuses e de honras ao imperador. Tais associações implicavam numa rede de relações sociais e comerciais que em última instância chegava até o imperador: “na época de João, a participação no culto imperial facilitava o caminho para a cidadania e possibilitava a judeus e cristãos lucrarem no mercado” (p. 191).
Ao analisar o Apocalipse de João, Kraybill comenta as várias acusações e metáforas de João de Patmos contra o Império Romano juntamente com as configurações sociais e econômicas de sua época: “(...) a pressão do culto imperial está no centro da preocupação de João. As duas bestas, que tanto se destacam no mundo simbólico de João, fornecem a chave para entender o Apocalipse como um todo. A primeira Besta (13,1-10) parece representar ou o Império Romano ou o próprio imperador. A segunda Besta (13,11-18) é, provavelmente, o sacerdócio do culto imperial, a elaborada instituição que floresceu na Ásia Menor e que concedeu honras divinas ao imperador” (p. 34). Além das bestas, claramente associadas a Roma, João de Patmos se refere à cidade como “Babilônia”, “Prostituta” e até mesmo implicitamente como Tiro, “o grande poder marítimo que misturou culto e comércio de maneira repulsiva ao profeta Ezequiel” (p. 198).
“Culto e comércio imperiais no Apocalipse de João" nos ajuda a entender algumas nuances das complexas relações entre judeus, cristãos e a sociedade romana do século I. Os judeus já vinham de uma experiência de quase três séculos de relações com Roma e contavam com certas concessões, os cristãos, no entanto, eram um grupo novo, enfrentando inclusive a hostilidade de judeus e romanos, tornando-se vulneráveis às pressões sociais. Devido a inevitável separação entre o culto imperial e o comércio, João de Patmos recomendou que os judeus e cristãos autênticos cortassem suas relações com Roma: “Saí dela, ó meu povo, para que não sejais cúmplices dos seus pecados e atingidos pelas suas pragas” (Ap 18.4). Na prática, isso significaria se expor à vulnerabilidade econômica e social, sacrifício que seria recompensado pelo próprio Jesus Cristo, como expressam as cartas às sete igrejas (Ap 1.4 - 3.22).
O contraste entre Roma (Babilônia) e a Nova Jerusalém (Ap 21) revelam alguns anseios de João de Patmos por uma sociedade justa e igualitária, possível por meio da intervenção divina na História: “Isaías e João de Patmos escreveram a respeito de um glorioso futuro, e ambos consideraram o presente uma mistura de idolatria, exploração militar e injustiça econômica” (p. 292). Apesar das dificuldades daquele presente, a mensagem do Apocalipse de João para seus leitores é de que embora não se envolver com o culto imperial tivesse seus custos sociais e econômicos, eles podiam ter certeza de que participariam do culto a Deus e teriam cidadania plena na Nova Jerusalém.
KRAYBILL, J. Nelson. Culto e comércio imperiais no Apocalipse de João. São Paulo: Paulinas, 2004.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.
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